
Sítio Arqueológico – Senzala de Volta Miúda – Patrimônio Cultural Lei nº3924/61
Franedir Gois
18 de março de 2024Franedir Gois/Riquezanossa
O Ministério da Cultura declara, através do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) que o Sítio Arqueológico-Senzala de Volta Miúda é Patrimônio Cultural e deve ser protegido pela Constituição.
Na perspectiva de patrimônio a Associação de Produtores Remanescentes Quilombolas de Volta Miúda – Caravelas, BA se reuniu na manhã de domingo, 17 de março de 2024 para rememorar a história de seus ancestrais, seus antepassados que estiveram na Senzala, em meados do século 17.
Dona Brasília Aleixo, 91 anos, a mais antiga da comunidade, assim como seu irmão Brasilio Jerônymo, 88 anos relataram fatos contados por seus bisavós e avós, fatos esses que caracterizam desumanidade e falta de amor ao próximo.
O presidente da Associação, Célio Leocádio, proporcionou o encontro para mostrar a comunidade o valor histórico e cultural fincado naquele lugar onde os antepassados viverem e lutaram para que a árvore genealógica chegasse até nossos dias.
O Local e vistoria
O local foi objeto de vistoria e o IPHAN procederá o seu registro no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos, como Sítio Arqueológico Senzala da Volta Miúda.
O sítio arqueológico em questão pode estar associado a dezenas de outros sítios semelhantes remanescentes da Colônia Leopoldina, instalada em 1818 nos municípios de Nova Viçosa e Caravelas, e que tais vestígios, assim como o sítio vistoriado, podem estar localizados em área da empresa Suzano.
- DESENVOLVIMENTO DA VISTORIA DO IPHAN AO SÍTIO ARQUEOLÓGICO DA SENZALA DA VOLTA MIÚDA
Para a realização da vistoria foi estabelecido contato com a Associação de Produtores Remanescentes Quilombolas de Volta Miúda – APRVM, cujo presidente, Sr. Fábio Pinheiro Leocádio, além de outros dois integrantes da comunidade, guiaram a equipe até o local indicado no ofício do MPF, onde haveria “ruínas de antigo grupamento de quilombo que ali se instalou, com possibilidade de configurar patrimônio histórico e cultural” (0753807).
As ruínas mencionadas na correspondência do MPF estão localizadas em um córrego afluente do braço norte do Rio Peruípe, cuja nascente está localizada junto à comunidade quilombola, distando cerca de 5 km da mesma.
O local vistoriado dista cerca de 34 km da sede de Teixeira de Freitas em percurso feito por estrada vicinal. Cerca de dois quilômetros antes do entrocamento com a rodovia BR-418 encontra-se o acesso ao local denominado “Senzala”, percorrido parcialmente de carro e o restante a pé (Figuras 1-2, 1009044).
O caminho de acesso ao local margeia o vale do mencionado córrego afluente do braço norte do Rio Peruípe (Figuras 3-7, 1009044). No fundo do vale observa-se uma barragem de terra (24K, 435088, 8032948) (Figuras 8-9, 1009044) e uma série de ruínas de edificações em alvenaria de pedra e tijolos, dentre as quais um aqueduto, cuja terminação indica que o local abrigou uma roda d’água (Figuras 10-15, 0915180), dentre outros vestígios construtivos cuja visibilidade é prejudicada pela vegetação (Figura 16, 1009044).
Na margem direita do córrego, a poucos metros da barragem, observa-se outro conjunto de ruínas em alvenaria de pedras, destacando-se uma plataforma com embasamento e piso, escada e vestígios de tubulação de ferro fundido (24K, 435027, 8032978) (Figuras 17-21, 1009044).
Nesta vistoria foi realizado caminhamento em todas as áreas indicadas pelos membros da comunidade, com o registro fotográfico georreferenciado das estruturas visíveis, não sendo realizadas escavações ou recolhimento de cultura material.
Os informantes relatam que até anos atrás a área era mantida acessível, com a limpeza periódica da vegetação, tanto do acesso quanto das ruínas, quando o local era utilizado com frequência pela comunidade. Em tempos recentes, destacam o abandono paulatino do local, ressaltando, conforme constatado em vistoria, o plantio de mudas de árvores ao longo da estrada de acesso (24K, 435083, 8033318), atribuído à empresa Fibria, que seria a proprietária da área (Figura 6, 1009044).
Em breve conversa com o Sr. Brasílio Jerônimo (80), um dos moradores mais antigos da comunidade, o local denominado Senzala abrigava as edificações de uma fazenda. Ele ainda teria alcançado, décadas atrás, a presença de uma casa ainda em uso e remanescentes de estruturas como a roda d’água junto ao aqueduto.
- CONTEXTO HISTÓRICO DOS ACHADOS ARQUEOLÓGICOS
Os moradores da comunidade quilombola de Volta Miúda atribuem uma antiguidade imemorial às ruínas vistoriadas, não as associando a um uso determinado, ressaltando-as apenas como vestígios de uma antiga propriedade rural onde seus antepassados trabalhavam como escravos, conforme registro apresentado na sede da APRVM que indica a origem das famílias residentes na comunidade e sua relação com a escravidão (Figuras 22-24, 1009044).
Na área denominada Senzala, são observados vestígios construtivos condizentes com uma antiga propriedade rural que abrigava um engenho movido por força hidráulica, considerando a presença de barragem, aqueduto, local da roda d’água e um conjunto de edificações.
As estruturas verificadas no local consistem em vestígios constituídos de alvenaria de pedra e cal, visíveis apenas parcialmente devido à cobertura vegetal e aos sedimentos acumulados ao longo dos anos. Por este motivo, sua extensão, uso e período de ocupação podem ser determinados com precisão apenas através de pesquisas históricas e escavações arqueológicas.
A área vistoriada está inserida na região correspondente à antiga Capitania de Porto Seguro, onde registros históricos indicam a presença dos colonizadores europeus desde o início do século XVI (Figura 25, 1009044).
O aproveitamento da energia hidráulica em pequenos cursos d’água para a instalação de engenhos é observada na região do Extremo Sul da Bahia desde os primeiros anos da colonização portuguesa, seja através dos registros históricos, como também de vestígios arqueológicos, registrados em pesquisas desenvolvidas nos últimos 20 anos (NASCIMENTO, 2000).
Neste sentido, podem ser destacados dois locais associados a engenhos de açúcar conhecidos na literatura histórica e identificados durante intervenções arqueológicas: o engenho de João da Rocha / Sítio Engenho do Itacimirim, em Porto Seguro, mencionado na obra de Gabriel Soares de Souza (SOUZA, 1971, p. 83), e o engenho do Duque de Aveiro / Sítio do Tanque, ou Mundinho, em Santa Cruz Cabrália, ambos datados do século XVI (MORALES, VIVA e MOI, 2006, p. 167-177, 0418221).
No final do século XVI, Gabriel Soares de Souza também faz referência à região de Caravelas, destacando-a como propícia ao assentamento de povoações, dada a disponibilidade de pesca, das terras para plantio e dos rios que permitiam a atracação de embarcações de maior porte (SOUZA, 1971, p. 86-87).
Além dos registros históricos e arqueológicos sobre a ocupação da região desde os primórdios da colonização portuguesa, o local da vistoria integra um contexto histórico específico, relativo à instalação das primeiras colônias germânicas no Brasil em 1818, localizadas em margens opostas do Rio Peruípe: Leopoldina, na margem sul, em Nova Viçosa, e Frankenthal, na margem norte, em Caravelas, cujas fazendas que as integravam passaram a ser referidas como Colônia Leopoldina (CARMO, 2010, p. 30) (Figura 26, 1009044).
Aquarelas de 1835, do artista suíço Bosset de Luze, ilustram a Fazenda Pombal, que integrava a Colônia Leopoldina (BACELAR) (Figuras 27-28, 1009044). A fazenda Volta Miúda, de propriedade de Luiz de Jouffroy, compreenderia uma das mais antigas do empreendimento (CARMO, 2010, p. 104).
O principal produto exportado pela Colônia Leopoldina era o café, havendo também a produção de algodão, milho, feijão e mandioca, dentre outras culturas, além da exploração da madeira. O processamento da produção envolvia a presença de engenhos para o aproveitamento da força hidráulica, com o registro de aterros para a construção de barragens – como aquela objeto de vistoria neste parecer -, com o objetivo de movimentar serrarias e uma série de máquinas de beneficiamento nas fazendas (CARMO, 2010 e OBERACKER Jr., 1987).
A título de exemplo, em uma das propriedades da colônia, a fazenda Helvécia, existiam, em 1868,[…] duas moradias cobertas de telhas e com paredes de tijolos, abrangendo a segunda, cozinha, farmácia, armazém e dois quartos; havia ainda uma moradia “mais modesta” para escravos com 38 quartos, outra também coberta de telhas e com paredes de tijolos que servia de armazém. Finalmente havia duas casas da mesma construção (“poulotier”), servindo uma de estrebaria, duas casinhas cobertas de telhas para o jogo de bolão, duas barracas velhas com comedouro fechado, duas barracas velhas para as canoas, outra para as carruagens, um engenho de açúcar, coberto de telhas e com paredes de tijolos, abrangendo uma serraria, ferraria, cozinha para fabricar farinha (de mandioca), tanques para lavar café, aparelho de descasque de café, ventilador, máquina e prensa para algodão, depósito para tábuas, etc.; outra casa com 63 gavetas (sic!) e depósito; um terreiro pavimentado de 30.000 tijolos para secar café (OBERACKER Jr., 1987, p. 476).
As colônias germânicas instaladas no Brasil após a Colônia Leopoldina são caracterizadas pelo aproveitamento familiar da terra, dividida em pequenas propriedades, e com a proibição do uso de escravos. A Colônia Leopoldina, por sua vez, se destaca como uma exceção a este modelo pelo fato de ter contado, a partir de um determinado período, com mão de obra escrava africana, onde a cultura do café deu origem a grandes propriedades como as observadas no Sudeste (CARMO, 2010, p. 33).
Em meados do século XIX, a Colônia era a maior produtora de café da Bahia, exportando entre 66 e 70 mil arrobas em 1847, contando com 40 fazendas ocupadas por 130 pessoas livres, além de índios empregados na agricultura e 1267 escravos (BACELAR). Em 1858 havia 40 fazendas, “em que viviam 200 brancos ‘na maioria alemães e suíços’, mas também ‘alguns franceses e brasileiros’; estes brancos eram donos de cerca de 2000 escravos pretos, quase todos já nascidos na própria colônia” (OBERACKER Jr., 1987, p. 472).
- EXTENSÃO E RELEVÂNCIA DA ÁREA DE INTERESSE ARQUEOLÓGICO
O local vistoriado compreende possivelmente uma das unidades que integravam a antiga Colônia Leopoldina, criada por imigrantes germânicos em 1818 no Extremo Sul da Bahia e que consiste na primeira colônia fundada por europeus não-portugueses no Brasil no século XIX (OBERACKER Jr., 1987, p. 455-456), resultado da política de incentivo à imigração européia adotada por D. João VI (CARMO, 2010, p. 13).
As ruínas estão localizadas em um córrego, em cuja cabeceira há uma comunidade remanescente de quilombolas, denominada Volta Miúda, mesmo nome de uma das mais antigas propriedades da extinta Colônia Leopoldina, que fazia uso da mão de obra escrava trazida da África.
No cenário observado, a possível associação dos achados arqueológicos com uma propriedade rural escravagista colonial consiste em uma hipótese de grande relevância para a história nacional, considerando o esforço governamental, após a abolição da escravatura, de esquecimento da escravidão e da adoção de uma política de branqueamento da população brasileira via imigração.
A Colônia Leopoldina era composta por, ao menos, 40 propriedades rurais de diferentes configurações, considerando o tamanho da área cultivada e instalações, conforme relatado em estudos históricos (CARMO, 2010 e OBERACKER Jr., 1987), ocupando terras dos municípios de Nova Viçosa e Caravelas.
Com isso, cumpre ressaltar que o sítio arqueológico objeto de vistoria é parte de um conjunto de sítios, cuja identificação e preservação depende da realização de pesquisas arqueológicas de caráter extensivo.
Ademais, é importante ressaltar que os achados em questão podem anteceder ao período de ocupação da Colônia Leopoldina, considerando as referências históricas e arqueológicas regionais que remontam ao século XVI, podendo compreender uma reocupação, no período da citada colônia, de instalações mais antigas, ou, ainda, uma ocupação continuada, iniciada antes da chegada dos germânicos.
Vejas os demais vídeos do encontro dos quilombolas de Volta Miúda na Senzala do século 17.